O meu novo livro já tem mais de duzentas páginas e promete ir às mil. Talvez seja editado post mortem, pois para já o país ainda não está preparado pera assimilar a sua mensagem intrínseca. Não sou escravo do mercado. Hoje em dia os escritores escrevem para um prémio aqui, uma sinecura ali, um banho de multidão numa escritaria qualquer. São demasiado vácuos, demasiado a leste da realidade que os circunda. Refugiam-se no passado, no abstrato, no cinzentismo, para se darem ares, caírem bem nas máfias literárias que a soldo dos impérios financeiros andam por aí. Num ambiente corrupto até a literatura caiu nas suas garras omnipresentes.
Eu não sou vendável. Em ambos os sentidos do termo. Logo, só posso escrever para o futuro. Não tenho veleidade sem ser colunável ou figura de proa do jet set. Sou como sou e não irei mudar. O povo que hoje devora livros é vítima do mediatismo alucinante, do marketing estuporado que aliena, estupidifica, sacraliza alguns de forma excessiva, mas sem aquele carisma imorredoiro que deleita e fascina os veros apreciadores do néctar literário na sua mais requintada expressão.
O narrador é o historiador Herculano Seguro, residente nas beiras, de onde observa a capital com sarcasmo e sobranceria. Uma simbiose de Alexandre Herculano e António José Seguro; tem a lucidez de um Winston Churchill, a paciência de um Sherlock Holmes e a ironia de um Charles Chaplin.
Tal como o conceituado historiador que, farto das intrigas palacianas da capital, se retirou para Vale do Lobo, também este fez uma cura de distanciamento e rumou ao interior, de onde vai observando as peripécias de uma rapaziada ignóbil, que vai dando cabo do país pouco a pouco, contudo, ostentando um ar de imaculada superioridade e de cretina ousadia. Sempre a incensar-se a si própria e pagando generosamente a turibulários mercenários para o fazerem também. Uma corja!
Herculano Seguro retrata o perfil de um juiz honrado e incorruptível, chamado Alexandrino Salomão, que, apesar de fustigado por certa comunicação social enfeudada ao vespeiro mandante, contra ventos e marés, leva o barco da justiça a porto seguro. Tem um amigo poeta que lança bordoadas ao putrefato "Sistema", que ele designa por "corja" aristotélica. Chama-se Ramos de Barros.
Quem é José Aristóteles? É o popular "Zezito", um provinciano petulante que ascendeu na política de forma muito rápida e astuta à custa da corrupção, do compadrio, da cumplicidade de muitos compagnons de route. É cognominado por Herculano Seguro de " a bomba". É a bomba aspirante-premente da corrupção e das suas teias, dos seus vasos comunicantes. A "bomba" tem uma doença grave, incurável: «a síndrome da aparência!»
Desde pequenote o "Zezito" sofre dessa maleita. Gostava de ser o melhor, o mais atrevido, o mais amado. Pela vida fora essa doença catapultou-o para a fama. Contudo, tinha de pagar caro para ter fama. Habituou-se a pagar e arranjava sempre maneira de outros lhe pagarem mais a ele, para não ficar dependente. Enfim, a tal bomba aspirante premente, aspirava com astúcia a este e àquele e ia premindo, premindo, para que o fluxo financeiro não parasse e fosse irrigando a vasta selva das suas cortesãs e cortesãos.
José Aristóteles, por vezes, confessava aos amigos íntimos que era vítima das suas meretrizes . Mas queixava-se de, também ele, ter "rameiros" no seu séquito, na sua vasta corte, no seu rol de tentáculos. Fazia-se pagar caro pelo banqueiro Ricardo Água Doce, quando este lhe pedia algum favor, mas também era saqueado por alguns a quem pagava generosamente. Ricardo Água Doce também sofria de uma doença grave: a generosidade patológica, a prodigalidade.
Mas também sabia ser pródigo consigo próprio, tinha sacos azuis disfarçados em todos os paraísos fiscais, a que dava o nome de "ninhos". Tinha o cuidado de afirmar, quando lhe gabavam essa generosidade galopante: «tenho ovos em vários ninhos" e "a poedeira continua a esmerar-se pois são sempre ovos de oiro...". A poedeira era o banco que levaria ao pântano, muito mais tarde...
O juiz Alexandrino Salomão vivia mal, passava noites em claro, mas era escravo da sua consciência moral, do seu amor à causa nacional, enfim, tinha sempre em mente que vestia a camisola do povo, dos desfavorecidos, dos lesados pela ganância (doença?) dos "donos disto tudo", como dizia aos amigos e confidenciava à família. Mas não era um homem cinzento e frio como argumentava Aristóteles. Ele não podia frequentar festas, manifestações mundanas, restaurantes de luxo, porque não dispunha de meios e a natureza específica da sua função, também o exigia. O dever de recato e a reserva eram atributos que ostentava com orgulho. Era um "miserável", no sentido de austeridade, da vida espartana que levava. Fazia da sua missão um sacerdócio, era tido como o novo Cristo que empunhava o chicote da justiça para expulsar os vendilhões do templo democrático.
Mas tinha um secreto prazer na sua missão. Desvendar mistérios, fazer cair os anjos hipócritas da sociedade, desmascarar os fariseus da nova era. Descobriu até que o fariseu Aristóteles mandava escrever livros para ser ele a publicar e fazer constar que eram de sua autoria. Pagava caro ao escritor e usava testas de ferro para encaminhar fluxos financeiros diversos para despistar a justiça.
Quando foi descoberto, ele gritou, barafustou, e usou os megafones mediáticos dos seus sicários para berrar alto e bom som: «E tudo um embuste, um romance, uma campanha negra contra mim!»
Mas Aristóteles também tinha virtudes. Gostava de animais. Tinha até uma cadelinha de luxo a quem depositava os mais recônditos segredos. Chamava-lhe Branquinha,.. era a sua branca de neve.
Há mais pessoas assim, não vendáveis. Mas desde que dê prazer escrever já vale a pena.
ResponderEliminarAbraço
A minha amiga Gabriela também, julgo que não se deixa rebaixar ao mercantilismo fácil. Sei que custa mas tem de ser. Semear em terreno árido (o leitor médio...) não poderá dar frutos...Há que investir no longo prazo...Cumprimentos. E que a ria continue inspiradora...José Leite de Sá
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